Meu Caminho Aikidoka

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sábado, 4 de abril de 2020

Meu Caminho Aikidoka - O 1º Kyu


Este texto é sobre medo, insegurança, dor e lágrimas.

Um ano havia se passado desde o meu último exame de graduação de Kyu. Este com certeza foi o maior tempo em que permaneci treinando sob um mesmo título desde que iniciei a minha trajetória no caminho da paz no início de 2017.
Quem me acompanha pelo blog sabe que sempre digo que as coisas estão ficando cada vez mais difíceis. As vezes quando eu digo isso é com um medo enorme de que o caminho se torne ainda mais confuso e tortuoso. Na verdade, enquanto escrevo estas palavras me lembro claramente do meu Sensei falando do quanto seria difícil. Ele dizia: "o Aikido não é fácil, não vai ser fácil para nenhum de vocês. Vocês escolheram o caminho marcial mais difícil para trilhar". Nunca me passou pela cabeça o significado de 'difícil' ao qual ele estava se referindo na época. É claro que hoje sei que o conceito de dificuldade do Sensei é completamente diferente do meu, assim como é diferente de qualquer outra pessoa. Cada um tem o seu próprio conceito de dificuldade.
A dificuldade começa quando você percebe que quanto mais você conhece, mais existe a desbravar, a estudar. Não importa o quanto você saiba, nunca é o suficiente para você pensar que sabe um pouco e se conformar com isso. E essa sensação só se agrava porque, ao passo que você evolui, os iniciantes ao seu redor começam a se espelhar em você e com isso eles vem até você com as suas dúvidas e anseios, como se você fosse o poço do conhecimento que eles precisam naquele momento. Sei disso pois, tempos atrás era eu nesse papel. Na verdade continua sendo eu nesse papel. Então você vai percebendo que as dúvidas delas são as suas dúvidas e que, de fato, você nada conhece. Tenho a impressão de que vai ser sempre assim. Não é como se alguém estivesse na frente. O conceito de graduação definitivamente não vai te colocar na frente de alguém. E digo isso não porque eu tenha algum anseio de estar 'na frente', muito pelo contrário. Mas sempre tive a impressão que meu Sensei, o Sensei dele, nosso Mestre, todos eles estivessem de alguma forma na minha frente. Eles porém, também estão na busca do conhecimento e não são os detentores das verdades absolutas acerca do Aikido. Eles também estão estudando arduamente em busca das respostas. A diferença que eu vejo é que, as respostas que eu busco hoje, eles já buscaram algum dia, e as respostas que hoje eles buscam alguém já buscou no passado. Hoje me vejo estudando mais ao invés de vir perguntar tudo a todo momento. Me vejo dialogando com meus sempai e Sensei e argumentando sobre o entendimento de um ou outro ponto, criando a minha própria visão do Aikido. Quando meu Sensei me diz que é preciso aprender a andar pelas próprias pernas acredito que é nesse ponto que ele quer chegar. Ele vai sempre nos guiar pelo caminho, mas a busca pelo conhecimento e entendimento deve partir de cada um de nós.

O ano de 2019 foi turbulento. Muitas reviravoltas. Eu me sentia esgotada emocionalmente. Eu queria estar bem, mas não encontrava forças no meu interior que me mantivessem de pé. O Aikido, que tantas outras vezes havia sido meu porto seguro, era agora uma fonte de dúvidas e questionamentos. Eu começava a ver algumas coisas que não me agradavam e eu não entendia. Não entendia onde eu estava errando. O que estava me faltando. Era como se eu estivesse às cegas. Procurei estudar, buscar de alguma forma as respostas sem muito sucesso. Eu já havia pensado em parar em outros momentos, mas nunca desisti. Tentava lembrar do quanto esse caminho já tinha me trazido alegria. Não era mais assim. Era um questionamento atrás do outro. Os treinos estavam pesados, eu me afastei do meu Sensei, do Dojo e das pessoas. Eu me chateava  por perceber que não fazia falta lá. Acho que isso se reflete no fato do quanto o Dojo fazia falta pra mim. Mas é difícil ficar quando você já não acredita mais. Essa é uma dificuldade minha. Muitos sabem que o Dojo é importante pra mim. O que a maioria não tem ciência é do quão colossal é o seu significado na minha vida e eu só não aguentava olhar pra ele agora e sentir que não era verdadeiro. Tudo o que eu tinha vivido até então ganhava um novo significado e eu já não sabia se a imagem que eu tinha construído era baseada na realidade. Talvez eu tenha esperado demais. Talvez eu tenha me iludido. Talvez eu tenha entendido tudo errado.
Eu queria parar. Cheguei a faltar por semanas inteiras mas nunca oficializei a minha parada. Estas semanas em que eu ficava sem treinar, tentava me convencer de que era um tempo para organizar a minha cabeça e conseguir ver as coisas com mais clareza por uma nova perspectiva. Tenho medo de pensar que eu só estava me enganando.
O tempo ia passando ao passo que eu me acalmei e tentei, mais uma vez, me convencer de que não deveria parar. Eu decidi que apesar das minhas dúvidas e questionamentos eu deveria buscar o meu próprio caminho. Fora dali eu estava lidando com muita coisa na vida. Poucas pessoas tem conhecimento das situações fora do Dojo que me afrontaram naquele período. A única coisa que eu sei é que eu estava fragilizada, sem forças e esgotada mas nunca cheguei a comentar essas minhas fraquezas com ninguém além da minha esposa. Ela também já não sabia mais o que fazer comigo. Ela sofria pois tudo o que ela queria era me ver bem e feliz, o que já  parecia inalcançável em certo ponto. Ela estava frustrada. E eu também.

Alguns meses antes do exame do final do ano meu Sensei me chamou para uma conversa. Tentei da melhor forma que eu consegui explicar o que eu sentia e o momento que eu estava vivendo. Disse que eu não me via preparada para fazer o exame de graduação. Não é como se eu não quisesse fazer o exame ou me graduar. Eu queria sim, queria muito. Apesar de não me enxergar como a Sempai que meus colegas mereciam, eu desejava muito chegar à Faixa Marrom. Só que o exame chegou em uma época errada da minha vida. Uma época em que eu simplesmente não conseguia dar a ele a atenção que ele merecia. Meu Sensei tentou me explicar que era ele quem decidiria quando eu estivesse pronta. Eu entendo esse conceito. Aprendi sobre ele logo no início, mas sempre me ocorreu que servia para que observássemos a nossa arrogância e prepotência se em algum momento cogitássemos a ideia de impor ao Sensei que chegara a nossa hora de graduar. Sempre concordei com isso, afinal, vejo que a evolução é conquistada e não imposta. Eu queria, pelo menos uma vez, levar as coisas em um ritmo mais lento. Organizar meu emocional e a vida antes de assumir mais responsabilidades. Eu, de verdade, queria os compromissos e responsabilidades que viriam com a graduação, por isso queria poder dar tudo de mim para este momento. Sempre tive a sensação de que meus exames de graduação foram acontecendo um atrás do outro sem que eu tivesse tempo de respirar entre eles e, por mais que eu treinasse, não era o bastante. As vezes faltavam dias na semana para que eu treinasse o suficiente. Naquela conversa o Sensei me convenceu a, mesmo assim, fazer os treinos de kihon, eu aceitei na certeza de que não seria convidada desta vez afinal, havia lhe explicado que não era falta de técnica ou ritmo que me prendiam. Só não era o meu momento.
À partir daquele dia treinei arduamente pelos 4 meses seguintes. Eu estava me apoiando no Aikido mais uma vez para tentar superar tudo o que eu estava vivendo lá fora na vida real. Muitas pessoas participaram dessa jornada. Um amigo em especial se desdobrou para estar presente em praticamente todos os treinos que eu fiz nesse período e abdicou do próprio treino para que eu pudesse praticar mais as minhas técnicas da minha grade e ficou como meu Uke por inúmeros treinos seguidos. Com isso, é claro que tecnicamente eu estava bem. Como havia me dedicado ao treinos, meu físico também se fortaleceu. Ainda que a vida lá fora estivesse um caos, eu me sentia melhor. Os treinos estavam me ajudando a superar. Eu busquei um terapeuta pra me ajudar com as questões emocionais porque eu queria melhorar e aprender a lidar com tudo o que acontecia aqui dentro.

Enquanto tudo isso acontecia, a data do exame se aproximava. Ele aconteceria no dia 07 de Dezembro. Então, eis que no dia 25 de Novembro fui oficialmente convidada pelo meu Sensei a realizar o exame. Como mencionei, eu não esperava que aquilo acontecesse. Não esperava que fosse convidada desta vez mas, indo contra a tudo o que eu havia explicado, meu Sensei decidiu que eu estava pronta e eu não podia não concordar. Seria desonroso discordar e não aceitar o convite. Ao mesmo tempo em que eu estava feliz em ter recebido este reconhecimento do Sensei, estava apavorada com a ideia de passar de novo pelo sufoco do meu último exame com toda a falta de preparo físico. Eu discorro com maiores detalhes sobre esse exame aqui. Faltava pouco tempo para a data do exame. Duas semanas precisamente. Era o tempo que eu tinha para consertar tudo o que me amedrontava. Era tudo o que me separava de fazer um exame que eu não queria e, mesmo assim, faria tudo ao meu alcance pra dar o meu melhor.

Só que não foi o suficiente.

O dia chegou. Eu estava nervosa. Tinha certeza de que iria sucumbir ao despreparo físico e eu tentava pensar positivo.
A organização decidiu por deixar os exames dos mais graduados por último naquele dia. Eu e mais dois colegas. Enquanto aguardávamos, ajudamos nas bancas e como Uke para outros colegas que prestavam seus exames. Foi bom para controlar a ansiedade e o nervosismo mas a hora chegou.
A primeira rodada de técnicas mal havia iniciado e o Sensei responsável pela minha banca me chamou a atenção por uma postura que era esperada que eu tivesse. Na hora eu fiquei um pouco confusa, pois havia treinado isso e não via onde poderia estar errando. Pensei que poderia ser o nervosismo me atrapalhando e procurei focar neste ponto em específico que a banca mencionou. Fiz mais alguns movimentos e o Sensei, novamente, me pontuou sobre o mesmo problema. Realmente, eu havia treinado aquilo, não entendia onde estava o erro. Àquela altura eu tinha certeza de estar realizando a técnica e a postura da mesma forma que vinha fazendo no Dojo pelos últimos quatro meses, então eu simplesmente não sabia o que dizer à banca.
O exame continuou ao passo que as minhas contagens de movimentos já não fechavam mais com as contagens da banca. Atribuí isso às chamadas de atenção que aconteceram logo no início e pensei que eu deveria me concentrar mais. Nesse ponto eu já sentia meus olhos se encherem de lágrimas e eu me sentia incompetente. Não conseguia nem fazer uma contagem coerente. Logo eu percebi que várias técnicas da minha grade de Kihon não estavam sendo solicitadas em sua totalidade de variações enquanto que outras simplesmente não estavam sendo pedidas. Ao entrever que isso estava acontecendo eu tinha certeza de que não importa o que eu fizesse, eu jamais seria aprovada naquele exame. A banca já havia desistido de mim e não achava necessário perder muito mais do seu tempo comigo. Então as lágrimas começaram a rolar. Meu coração doía por pensar que eu era uma perda de tempo. Que ali não era o meu lugar. Lembro de ver meus familiares aflitos ao redor do tatame, sem poder fazer nada e eu só me sentia envergonhada por lhes trazer tamanho desgosto. A banca me pediu para parar por um momento e me recompor. Mas eu não conseguia. Minha esposa apareceu e me falou algumas coisas, palavras encorajadoras. Eu queria deixá-la orgulhosa, mas não conseguia. Não conseguia parar de chorar e soluçar. Logo meu Sensei apareceu na minha frente e começou a me perguntar um monte de coisas que eu não sabia como responder. Eu só queria desaparecer dali. Sumir e nunca mais ser encontrada. Ele me disse várias coisas que eu não lembro. Só lembro de ter ouvido: 'você chegou até aqui pra desistir agora?'. Até hoje não sei se foi ele ou a minha voz interior gritando para que eu levantasse mas, naquele momento eu decidi que eu me levantaria e iria até o fim. Estando ou não reprovada pela banca. Eles querendo ou não perder o seu tempo comigo. Eu não estava cansada, eu poderia ter continuado por horas. Eu só não conseguia parar de chorar. As lágrimas escorriam pela minha face, molhavam meu dogui, embaçavam a minha visão e me impediam de respirar corretamente. Mas eu levantei, me posicionei e continuei. Fiz outras sequências de movimentos, um dos meus Ukes não estava me ajudando, era como se ele não quisesse estar ali e me dificultava em todos os movimentos. Lembro de pensar em meio às lágrimas que diabos de provação era essa!?
Como se não fosse o suficiente, a banca me pediu uma sequência de técnicas que não existiam na minha grade de kihon para o 1º Kyu. Depois de tudo o que já tinha acontecido naquele dia, eu já duvidava até da minha própria sanidade e com certeza eu estava errada, com certeza não havia prestado atenção à minha grade como deveria durante os treinos. Dias depois descobri que aquela técnica realmente não fazia parte da minha grade de Kihon, afinal.
Lembram daquele amigo que treinou comigo incansavelmente antes do exame? Ele estava comigo como Uke desde o início. Quando o Sensei solicitou que os Ukes fossem trocados, ele fez questão de permanecer onde estava. Alegou que não estava cansado, o que nitidamente era uma mentira (ninguém diga que eu disse isso aqui). O outro Uke foi substituído e eu tentava de alguma forma demonstrar uma técnica que acreditava nunca ter visto ao passo que sentia a minha loucura crescer e se tornar cada vez mais real.
O exame continuou meio que pela metade até a hora dos Jiu Wasas (aplicação de técnicas livres). Eu ainda chorava, não havia parado de chorar em um momento sequer mas estava feliz de estar chegando ao fim. Dois Jiu Wasas da banca avaliadora se passaram e eu tinha terminado. Mas eu ainda teria mais uma surpresa naquele dia. Sensei Marcos (Sensei do meu Sensei) veio para, ele também, aplicar um Jiu Wasa. Era a primeira vez, desde que comecei os treinos, que Sensei Marcos me concedia a honra de receber um Jiu Wasa seu. Eu só sinto muito por não ter tido muito a oferecer naquele momento. As minhas lágrimas já eram uma mistura de decepção com alegria à essa altura.
Eu estava alegre pelo presente do Sensei Marcos, alegre por estar concluindo o exame, fosse qual fosse o resultado. Mas profundamente decepcionada por não ter sido capaz de estar emocionalmente equilibrada para esse momento.

Dias depois, chegou ao meu conhecimento que as bancas avaliadoras dos nossos exames de 1º Kyu foram instruídas a reduzirem o tempo dos exames devido ao limite de horário que tínhamos para fechar o ginásio e entregar as chaves. Descobri só depois que tínhamos esse limite de tempo, então em nenhum momento eles estavam desistindo de mim ou achando que não valia a pena perderem seu tempo comigo.

Eu fui aprovada afinal.
Ainda não me vejo detentora desta graduação. Talvez com o tempo isso mude, talvez não. Não acho que, como sempai (aluno veterano) eu seja qualquer exemplo a ser seguido, ou tenha qualquer conhecimento a mais que meus colegas, visto que o que tenho é fruto apenas das minhas experiências e buscas particulares neste caminho de vida.

Eu continuo com a terapia e a aceitação da minha graduação vez ou outra surge nas sessões de conversas. O que me intriga é que independentemente de eu me ver ou não com esta graduação, esta é algo inegável para as pessoas ao meu redor. Neste ponto, vejo a enorme vantagem do Japão em não utilizar faixas coloridas para as graduações de Kyu. É como se isso desse mais tempo às pessoas de lhe conhecerem pelo menos um pouco antes de julgar o que você deveria ou não saber e o que deveria ou não ser uma dificuldade para você já que seria bem indelicado sair perguntando a graduação dos colegas quando você é recém chegado no Dojo. Hoje apenas sinto que sou obrigada a carregar o peso desse título na cintura, ainda que não tenha certeza do que ele deve significar para mim.

Ele deveria significar algo, afinal?

"Quem vence alguém é um vencedor, mas quem vence a si mesmo é invencível." - Ueshiba, Morihei - Fundador do Aikido

Ganbatte Kudasai!

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Meu Caminho Aikidoka - O 2º Kyu


Era Dezembro de 2018. Eu demorei pra contar esta história porque ainda é desconfortável pra mim. É claro que mais de um ano depois, houveram algumas reflexões e procurei evoluir na minha falha. Como vocês vão poder atestar no próximo texto, ainda não foi o suficiente.
Durante os últimos 6 meses do ano de 2018 eu deveria estar me preparando para meu exame de graduação ao 2º Kyu (Faixa Azul). Mas eu não estava. Eu estava cansada de treinar. Eu estava cansada de ir ao Dojo, aquecimento, treino físico, técnica. Meu corpo se sentia cansado, minha mente mais ainda. Eu havia começado em um novo emprego à 50km da minha casa. Me rendendo intermináveis 60 minutos por uma estrada sinuosa e perigosa todos os dias para ir e voltar do trabalho. Na época eu tinha carona com uma colega de trabalho, o que facilitava um pouco as coisas. Ter alguém pra conversar, mesmo que eu não seja o tipo que conversa muito pela manhã. Eu não associei o meu cansaço à nova rotina de trabalho. Na minha cabeça era do treino que eu estava farta. Então ia pouco aos treinos, sem me dedicar o suficiente.
Ainda assim, meu Sensei me convidou para fazer o exame de graduação no final daquele ano. Talvez ele entendesse que isso me daria algum ânimo, ou talvez para ele eu só estivesse pronta. Eu nunca me senti pronta na verdade. Mas neste exame em particular, eu me sentia mais segura, mesmo sem ter treinado com tanto afinco. Sempre pensei que fosse capaz. Vejam que naquele mesmo ano eu havia realizado o meu exame anterior para o 3º Kyu (Faixa Verde) e foi, de longe, o meu melhor exame segundo meu ponto de vista, já falei sobre ele aqui. A conquista da minha faixa verde foi motivo de muito orgulho para mim. Eu sentia que essa era, de fato, a minha graduação. Estava feliz com ela, com a forma como tudo aconteceu e não via razão para ser diferente agora.
Acontece que a minha circunstância era diferente. Eu estava desanimada com os treinos. Havia iniciado em um novo emprego. Estava cansada física e emocionalmente. Não estava treinando o suficiente. Apesar de tudo a minha confiança estava alta então, o que poderia dar errado?
O dia do exame chegou e com ele aquele nervosismo corriqueiro de sempre. O frio na barriga, o coração acelerado. Muitos amigos estavam presentes para prestigiar e também para realizarem as suas próprias provas. Era um dia quente e a intensidade do exame nos chamaria à uma prova de força e resistência.
Quem treina e me acompanha sabe que nos dias de exame, todos os praticantes se ajudam mutuamente durante as avaliações como Uke (aquele que recebe a técnica). Pela manhã eu já havia participado do treino infantil, auxiliando o Sensei com as crianças e nas suas respectivas provas. Eu me sentia bem, confiante e alegre.
Meu exame foi realizado à tarde, como de costume. Teve seu início frenético e na segunda técnica já me faltava ar. O corpo já dava sinais de fadiga e eu não conseguia respirar decentemente. Com isso fui ficando mais cansada a cada movimento. Quando percebi o que estava acontecendo tentei me acalmar e me recompor, mas nesta hora a minha visão já estava meio turva e eu tinha falta de ar. Aproveitei um momento de folga ao finalizar uma das rodadas de técnicas e concentrei meu foco em controlar a minha respiração de forma que o oxigênio chegasse devidamente aos meus pulmões e consequentemente à minha corrente sanguínea. Eu sabia que se não agisse rápido eu, provavelmente, desfaleceria no meio do tatame e meus esforços não teriam valido de nada.
Com tudo isso acontecendo eu fiquei nervosa, o nervosismo atrapalhava a minha respiração, meu corpo não conseguia fazer os movimentos corretamente. Meu nível de confiança caía a cada minuto e junto com ele a minha visão antes clara se escurecia cada vez que eu levantava para uma nova rodada de movimentos. Eu não queria parar. Fiquei meio orgulhosa nessa hora, confesso. Não queria demonstrar a minha fraqueza e tornar evidente a minha falta de treino. Eu queria demonstrar que eu era capaz de realizar um bom exame. Eu queria merecer aquela graduação e fazer jus ao convite do Sensei. Mas eu não esperava por isso. Não esperava que meu físico estivesse tão mal preparado. Isso impactou diretamente na minha postura durante as técnicas e a minha execução dos movimentos. Eu simplesmente não conseguia me concentrar nisso. Meu foco se voltou completamente em respirar e não desmaiar. Eu precisava ir até o fim. Precisava conseguir passar por isso. Concluí a demonstração das técnicas já exausta. Chegara o momento de receber os Jiu Wasa (aplicação de técnicas livres), onde o examinado deve demonstrar a sua capacidade de receber os movimentos com harmonia e destreza. Dois conceitos que eram simplesmente impossíveis para mim no momento. Eu ainda estava com muito medo de desvaecer e me faltava ar. Eu não conseguia respirar e a única coisa que eu conseguia pensar cada vez que era levada ao chão era: 'Respira e levanta! Você precisa levantar! Continua! Você está quase no fim! Não desista!'. Não sei como, mas eu levantava, atacava, recebia outro golpe, ia ao chão e repetia tudo dentro da minha cabeça. Lembro do pensamento de "Eu não consigo mais!' ter passado pela minha cabeça diversas vezes. A ideia de desistir estava presente em todo momento. Mas a minha teimosia acho que era mais forte, pois eu pensava 'Vou fazer só mais um e pra mim deu! Só mais um!', esse pensamento uma vez após a outra. De novo e de novo. Eu fui até o fim.
Quando acabou, os sentimentos de dever cumprido e decepção eram mesclados. Conforme eu recuperava o ar em meus pulmões enquanto a banca avaliadora deliberava sobre a minha avaliação eu só conseguia estar decepcionada com a minha performance. Decepcionada por ter sido tão descomprometida com meus treinos. Tive vergonha por estar tão confiante e entregar um exame tão mal executado fisicamente. Após algumas considerações sobre os meus movimentos, a banca por fim, decidiu me aprovar.
Algumas pessoas costumam dizer que sou muito crítica comigo mesma. Apesar de todo esse sentimento de insatisfação ainda recebi alguns elogios que, claramente, para mim não faziam sentido algum. No meu interior eu sabia que tinha capacidade e potencial para entregar mais. Se eu tivesse me dedicado mais, se eu tivesse me preparado, se eu tivesse levado os treinos mais a sério, se eu estivesse mais animada, se eu não tivesse aceitado o convite do Sensei, se... se... se...
O monstro do 'e se...' me persegue desde muito tempo. Hoje olho para trás e vejo que entreguei mais do que eu podia afinal, o 'e se..' não existe. Eu dei tudo de mim com o que eu tinha no momento. Todas as falhas, medos e acertos eram reais. Era a minha verdade naquele dia e não há nada de errado com ela.
A lição foi aprendida. A confiança não foi exatamente o meu calcanhar de aquiles nesta situação e sim, a minha prepotência em achar que eu não precisava treinar para entregar um bom exame. A soberba em pensar que eu tinha tudo, não precisava de mais nada. Eu fui arrogante. Essa é a minha verdade. Fui levada pelo sentimento de vaidade e deixei ela me dominar. A decepção com meu exame me trouxe de volta à realidade. Me pôs de volta ao lugar ao qual pertenço de reles aprendiz errante e inexperiente.
Um ano após esta experiência procuro estar alerta aos pensamentos e sentimentos que rodeiam a minha mente e meu coração. Ao menor sinal de que a arrogância esteja tentando sobressair à minha humildade, procuro algo que me tire da zona de conforto e me ponha de volta na minha realidade. Digo que é fácil e hoje já estou livre destes sentimentos? Não. Eles ainda fazem parte do meu dia a dia. Ainda habitam o meu coração e eu ainda erro. A diferença é que estou mais consciente de que eles habitam em mim e, com isso, me permito sair da posição de Go no Sen* podendo explorar um pouco mais do conceito de Sen Sen no Sen* e me antecipar, agindo antes que eles me dominem e vejo isso como algo positivo. Estou aprendendo com isso, sou apenas uma iniciante que sente vontade de desistir muitas vezes e luta contra isso pois acredita que o futuro pode trazer algum alívio ou benefício. Será que algum dia vou ter o sentimento de 'ter chegado lá'? Não sei. Na dúvida eu só continuo.

Ganbatte Kudasai!

*"Sen significa 'antecipar', 'vir antes'. O antônimo de Sen é Go, podem ser interpretados como a 'iniciativa' e a 'resposta'. Sen no Sen significa tomando a iniciativa, enquanto Go no Sen significa ficando atrás. Iniciativa é algo relacionado com se estar de prontidão." do livro Aikido - O caminho da Sabedoria - A Teoria por Wagner J. Bull
Desta forma, entendo que o conceito de Sen Sen no Sen, seria o de se adiantar antes mesmo que o inimigo tome a sua iniciativa.

"O progresso virá com a prática constante. Não procure por ensinamentos secretos que não levarão a nada. Confie nas experiências próprias." - Ueshiba, Morihei - Fundador do Aikido

sábado, 28 de março de 2020

Meu Caminho Aikidoka - O Sonho Despedaçado


Todos atravessamos momentos difíceis durante nosso percurso nesta vida. Alguns mais difíceis que outros. Cada um de nós enfrenta os momentos de tensão de acordo com nossos valores, desejos e medos.
Desde que descobri no Aikido o meu caminho de vida, descobri dentro de mim um medo colossal que jamais havia compreendido antes mas que, hoje, vejo de forma clara. Acho que antes, talvez, eu não tenha me dado conta do peso da chamada ação x reação. Eu sempre encarei esta máxima como fruto das nossas escolhas. De algo que seja consciente e premeditado. Se eu tomo uma decisão, esta trará consigo a sua consequência, a sua reação. E eu sempre julguei, imaginando, oras, se eu não tomar decisões equivocadas, não há o que temer. Eis que a vida, em sua maneira divina de nos ensinar, me mostra que, mais uma vez, não, eu não estava certa.

O episódio que eu quero narrar hoje, aconteceu há muito tempo. Demorou um pouco, é claro, para que eu pudesse refletir com maior clareza sobre o que este episódio estava tentando me ensinar.
Eu já treinava há um ano na época e estava muito empolgada com muitas coisas. Minha vida estava no início de um ciclo de muito aprendizado. Eu sentia tudo começando a se encaixar, pouco a pouco e isso me inspirava cada dia mais.
No nosso Dojo era quase que uma tradição a excursão anual para a Sede do nosso Instituto em São Paulo para que todos os Deshis (alunos) tivessem a oportunidade de treinar com nosso mestre.
A viagem era sempre de van, ou ônibus, organizada pelo meu Sensei, iam Deshis de Jaraguá do Sul e Joinville de Santa Catarina e rendiam histórias que eram contadas o ano inteiro, sempre acompanhadas de muitas risadas, além de muito aprendizado envolvido. Quando comecei nos treinos, passei o ano inteiro ouvindo as histórias espetaculares contadas pelos meus Sempai (aluno veterano). A vontade de ir na tal excursão crescia a cada dia.
No final daquele mesmo ano a organização da viagem começou e eu logo me prontifiquei a participar. A viagem acontecia no mesmo final de semana do Encontro Nacional do nosso Instituto, que tem Dojos no Brasil inteiro e, hoje, também um nos Estados Unidos. O Encontro Nacional ocorre uma vez por ano e traz gente de todo canto! É uma maravilha! Ter a oportunidade de treinar com tanta gente diferente, com tantas experiências novas. Ah, eu estava muito empolgada! Contava os dias, as horas e os minutos pra chegar o dia! A minha esposa havia começado a treinar também e estávamos ansiosas para viajar junto com o pessoal do Dojo.
A data chegou e embarcamos logo cedo no ônibus. Seguimos viagem à São Paulo. Pouco mais de 9 horas até a Sede do nosso Instituto.
No caminho, muitas histórias, muitas risadas, muitos fuscas! (Uma brincadeira interna que aprendemos com uma amiga! hahahah). Ao chegarmos, minha expectativa era de haver um treino, como haviam mencionado, mas este foi cancelado para que o pessoal "descansasse". Eu não concordava, já que viajei mais de 600 Km para treinar... não para descansar. Eu não entendia essa mania que o pessoal tem de fugir do treino, mas enfim... Passamos o restante da noite ociosos. No dia seguinte haveria o Encontro Nacional e treinaríamos o dia inteiro!
Na manhã seguinte acordamos cedo para que pudéssemos tomar um bom café da manhã antes de nos dirigirmos ao local do evento. O segredo era sempre observar o Sensei. Se ele já houvesse terminado o seu café, então você também terminava. Ninguém queria deixar o Sensei esperando. É meio confuso no começo mas, com o tempo e muita observação, você já antevê o que vem a seguir e as coisas fluem melhor. De qualquer forma, não deixe seu Sensei esperando, nunca. Esteja sempre pronto para seguir. Você deve esperá-lo, não ao contrário. Isto demonstra respeito e humildade para com os ensinamentos que você recebe e pelo trabalho do Sensei. Além de fazer parte do Budo.
Ao chegarmos no local do evento eu já estava maravilhada com tudo. Empolgação não faltava. Fomos honrosamente recepcionados pelo nosso Mestre Maruyama Shihan. Ele fez questão de ficar do lado de fora e cumprimentar a todos na chegada! Este gesto me fez pensar um pouco sobre humildade e gratidão. Eu sempre ficava reflexiva sobre o que faz uma pessoa ter seguidores (não esses seguidores numéricos na internet, seguidores e discípulos da vida real, sabe?), no motivo que faz uma pessoa seguir a outra. Quando parei para pensar um pouco sobre isso, percebi que a admiração que muitas vezes sentimos pelas pessoas, quase nem sempre é diretamente relacionada às coisas que essa pessoa conquistou, fez ou realizou, mas sobre como ela fez você se sentir enquanto vocês estavam juntos. O fato de a pessoa ser fiel aos seus próprios princípios, agir pelo que prega, seguir os próprios ensinamentos e discursos. Nosso mestre sempre nos prega sobre respeito, humildade e gratidão. Seu gesto naquele dia nos demonstrou cada um destes ensinamentos, de uma só vez.
Os treinamentos logo iniciaram pela manhã e a dinâmica parecia bem interessante. O enorme tatame fora dividido em 4 partes iguais, onde os 4 Sensei mais graduados do nosso Instituto ministrariam detalhes técnicos com base nas suas maiores habilidades. Nós fomos separados de acordo com as nossas graduações e treinaríamos meia hora com cada Sensei, com um pequeno intervalo de 5 minutos entre um e outro para que pudéssemos nos hidratar.
O treino teve início e, para o meu grupo, o primeiro quarto do treino já foi bem intenso e passou muito rápido. Era tanta informação para assimilar que mal vimos o relógio andar. Nesses encontros a gente só quer absorver o máximo que a gente consegue. Logo na sequência, para o segundo quarto dos treinos, meu grupo treinaria com a Sensei Teandra. Para mim, era o treino do dia. Como mulher, praticante de Aikido, era uma inspiração poder participar de um treino ministrado por uma mulher. Observar sua visão da técnica e da arte. Dentro do Aikido não temos separação entre homens e mulheres nos treinos. As técnicas são para todos. Isso é o que mais me admira nesta arte. Independente de você ser homem ou mulher, a sua visão vai ser diferente. É diferente para cada um. E isso me fascina.
O treino da Sensei Teandra começou intenso. Fizemos alguns movimentos, para mim era tudo novo, eu era recém graduada na faixa Roxa (4º Kyu). Alguns minutos se passaram e então veio a dor. Forte. Avassaladora. Havia torcido meu pé e meu parceiro de treino terminou por pisar por cima, intensificando ainda mais a lesão. Eu caí. As lágrimas rolaram. Sensei Teandra me pegou no colo e me carregou para fora do tatame. Me lembro de ela me dizer que tudo ia ficar bem. Um dos enfermeiros que estavam atendendo ao evento veio até mim para examinar. Ele passou pomada, massageou e enfaixou. Ele me disse que eu não deveria pisar pelas próximas horas, suspender os treinos naquele final de semana e procurar meu ortopedista ao voltar para casa. Aquilo fez meu mundo cair. A dor no pé já havia passado e estava longe da dor que eu sentia em meu peito. Do fundo do coração, e preferia a dor do pé torcido por mais mil vezes do que a dor que tomou meu peito ao ouvir que não poderia mais participar dos treinos do final de semana. As lágrimas rolaram por um longo período, lá da arquibancada, assistindo aos treinos que continuavam acontecendo. Eu não conseguia aceitar. A decepção. A injustiça do universo. A dor.
Foi a primeira vez que senti dor e medo ao vislumbre da leve ameaça de que algo tão especial e importante poderia ser tirado de mim, assim, tão rapidamente, de um segundo para o outro.
Para mim, o final de semana estava acabado.
Neste emaranhado de sentimentos e pensamentos nosso mestre, Maruyama Sensei veio ter comigo. Ele se sentou ao meu lado e perguntou como eu estava. Eu não sabia responder àquela pergunta, então só disse que estava bem. Que ia ficar bem. Ele me perguntou sobre a lesão, se eu havia sido atendida e se haviam me tratado bem (os enfermeiros). De fato, eu havia sido muito bem tratada. Recebi a atenção necessária. Então respondi que sim, que havia recebido orientações para não treinar mais aquele dia. Maruyama Sensei, com muita calma me disse que era bom que eu me recuperasse totalmente antes de voltar aos treinos. Era importante que o corpo estivesse bem para que os treinos fossem bem aproveitados. Lembro de concordar e tentar parecer calma e no controle dos meus sentimentos, quando meu interior era puro desespero. Mas eu não queria parecer fraca na frente do nosso mestre. Logo ele mudou de assunto e me perguntou o que eu estava achando da divisão no tatame, por graduações com a oportunidade de explanar diversas visões da técnica de acordo com nossos conhecimentos. Eu, de fato havia gostado muito da forma como eles haviam pensado na organização do evento e disse isso ao Shihan da melhor forma que consegui manifestar no auge da minha frustração por estar fadada à assistir de longe tudo aquilo que esperei por tanto tempo para fazer parte.
Assim que a segunda meia hora de treinos teve fim e os cinco minutos de intervalo iniciaram me vi rodeada de pessoas. Meus amigos mais queridos vieram todos para ver como eu estava. Eu estava triste e desanimada. Eles fizeram de tudo para levantar meu ânimo.
Durante todo o final de semana que se seguiu fui acompanhada, cuidada e amada. Senti em cada uma das pessoas que me acompanhou a empatia e solidariedade pelo momento que eu estava vivendo.
Meu Sensei dispôs de muito tempo se certificando de que eu superaria aquele momento e seguiria em frente.

Naquele tempo eu tinha menos entendimento, não consegui não ficar completamente devastada com o ocorrido. Poucos foram os momentos em que senti gratidão por todos os que dispuseram de seu tempo para cuidar de mim e constantemente me vi esbravejando contra o Universo. Não conseguia ver uma coisa boa sequer. Nem o fato de que a minha recuperação seria, muito provavelmente, rápida era o suficiente para acalmar a minha ira.
Voltamos para casa e eu estava em frangalhos. Tentei rir com o pessoal durante a viagem, mas era difícil e eu me entregava à tristeza rapidamente.
Conforme a recomendação do enfermeiro e do meu Sensei, busquei auxílio médico ao chegar em casa. O diagnóstico era promissor. Não havia rompimento do ligamento do tornozelo, apenas uma leve lesão no mesmo. A qual cicatrizaria rapidamente. Me renderia apenas 4 semanas afastada do tatame fazendo o tratamento com anti-inflamatórios.
Hoje vejo como 4 semanas passam rápido, mas na época, para mim era o fim. Como se eu não fosse sobreviver. Me afastei de cima do tatame, mas não do Dojo. Eu ia ao Dojo assistir os treinos com frequência durante o mês que não pude treinar. Vez ou outra meu Sensei até me mostrou uma e outra torção em que eles estavam trabalhando naquela semana. Era ótimo, mas eu não via a hora de poder subir naquela lona novamente e participar ativamente dos treinos.
Durante o tempo em que treinei 'do banco' no entanto, tive a oportunidade de observar diversos aspectos das técnicas que não haviam me ocorrido até então e, talvez, nem chegassem a ser observados por mim não fosse pela situação. A perspectiva era diferente e me vi enxergando as técnicas com um novo olhar. É como se elas fossem todas novas de novo. Isso sem contar a experiência de poder observar o Sensei ao dar os treinos. Observar a sua didática e postura, atitudes frente às situações e dúvidas dos alunos. Por diversas vezes me vi questionando o que eu faria se estivesse no lugar dele. Lembro de ter conversado com ele a respeito de uma ou outra situação que acabei vendo de fora do tatame e isso me rendeu explicações e observações que talvez eu jamais chegasse a ter se tudo tivesse ocorrido diferente.
Descobrir o que aquele momento tentou me ensinar é algo difícil de mensurar. O que posso afirmar é o quanto de fato consegui vislumbrar por conta do que aconteceu. Sim, foi triste e meu sentimento de perda foi real. Mas hoje consigo ver com maior tranquilidade que a circunstância me trouxe muitas reflexões, aprendizados e observações, além de ter estreitado meus laços com meu Sensei e com alguns amigos mais próximos. Eu não teria passado por esse momento sem o auxílio de cada um deles.

O que me traz a certeza de que aprendi uma lição é poder me imaginar em uma situação parecida e não entrar em pânico, como ocorreu naquela vez. É sentir no meu coração que os momentos difíceis e de tristeza vão chegar. Mas com eles vem muitos aprendizados, se eu me permitir viver cada momento sabendo que tudo passa. Devo procurar levar o melhor de cada uma destas oportunidades como um crescimento pessoal, pois hoje vejo o Aikido como uma prática constante que não depende de eu estar no Dojo para treinar. O treinamento é diário e constante. Treinar a mente também é treinar Aikido.

"Se o coração é impuro, estarás cheio de tensão interior, de orgulho, de desordem, de confusão, de mil enfermidades físicas, mentais e emocionais. Jamais poderás compreender o Aiki se seu coração não se purifica. Deves, pois, limpa-lo para ter paz consigo e com o mundo, não sendo inimigo de nada e não vendo nada como seu inimigo." - Ueshiba, Morihei - Fundador do Aikido

sexta-feira, 27 de março de 2020

Meu Caminho Aikidoka - E a Pandemia


Tem sido diferente esses dias.
Em dezembro de 2019, mais precisamente no dia 31 de dezembro, sim, ano novo, a China anunciou o surgimento de um novo vírus que estava  se espalhando rapidamente. Em Fevereiro de 2020 já havia sido considerada uma pandemia.
Ao longo dos meus 31 anos, nunca havia visto algo parecido. Nasci em uma época privilegiada. Não vivi as guerras nem a ditadura. Era muito nova quando as bolsas quebraram e outros golpes do governo foram aplicados, fazendo milhares de pessoas sofrerem. Eram coisas que eu só lia nos livros de história e, sinceramente, eu nunca entendi muito mesmo.
Vivenciar esta experiência tem me trazido muitas reflexões acerca dos sentimentos e necessidades  do ser humano. Há uma semana iniciei meu isolamento, determinado pelo governo do meu estado. No lugar que eu trabalho muitos foram dispensados do deslocamento até a empresa, podendo fazer o trabalho remotamente de casa, enquanto a outros foram concedidas férias. Mesmo com esta facilidade, toda uma nova rotina está sendo criada. Desde criar um espaço dentro de casa onde se possa trabalhar com conforto, até gerenciar a autodisciplina para não acabar se perdendo nos afazeres domésticos, deixando o trabalho de lado. Tem sido um desafio.
Além disso, lidar com o fato de ficar sozinha, dependendo apenas de mim mesma, sem poder trocar ideias e energias com outros seres humanos tem sido particularmente difícil para mim. É até estranho pensar sobre isso pois, sempre me considerei meio antissocial. Me ver nesta posição é algo novo e bem desconfortável.
Os treinos de Aikido, assim como todas as demais atividades e comércios ditos 'não essenciais' precisaram ser paralisados. Nos proibiram até de reuniões particulares com os amigos. Neste ponto eu me pergunto até onde a saúde mental não é indispensável para a sobrevivência humana. Porque ela não é uma prioridade? Obviamente vejo e entendo todas as razões para o isolamento social. Estamos lidando com uma doença séria e que dever ser tratada com seriedade e responsabilidade. Nesta questão existe ainda um outro ponto que deve ser mencionado. Todos estamos vivendo o mesmo momento no planeta, o pânico está instaurado em nossa sociedade, pobre de discernimento, as fake news tomam conta dos nossos cérebros nos levando a um ciclo vicioso de medo e incerteza. Quando todos estão falando sobre o mesmo assunto, disseminando informações a todo momento, enchendo as nossas cabeças com notícias absurdas e tristes fica difícil manter a própria sanidade e sair desta linha de pensamento sem o apoio emocional que o contato humano nos proporciona se torna uma missão quase que impossível. Confesso que não sou o tipo de pessoa que acompanha os noticiários, não assino páginas de notícias nem procuro me informar sobre as ditas 'realidades' do mundo nem em um âmbito regional, pois fico impressionada facilmente e considero a minha saúde mental algo particularmente importante. O que vemos nos jornais e noticiários são, em sua massiva maioria, tragédias, violências e tristezas, porém, desta vez, fui levada a buscar informações concretas, estudar e ler a fim de fugir das notícias falsas e desconexas. Desenvolvi mais meu pensamento crítico, conheci cientistas que me explicaram sobre como os dados e estudos científicos funcionam. Fiquei triste e revoltada quando vi meus familiares e amigos sofrerem em pânico por informações falsas e dados incompletos disseminados pela mídia e por pessoas irresponsáveis, passando para frente coisas que sequer eram verdadeiras, como se toda a situação já não fosse, por si só,  triste demais, pesada demais, difícil demais. Me tornei a chata da pesquisa nos grupos da família e dos amigos. Tentei explicar sobre a responsabilidade individual de disseminação de informações. Percebi o quão importante é a pesquisa, o conhecimento e o discernimento. Vi o quanto, mesmo na era digital, onde uma enorme parcela da nossa sociedade tem acesso à informação, as pessoas carecem de pensamento crítico. Como já não somos mais ensinados a pensar, é tão mais fácil só acreditar em uma 'notícia' falsa que aquele famoso que sou fã está dizendo do que correr atrás das fontes e analisar os fatos. 
É complexo pensar que esta mesma era digital, que frequentemente tem nos levado a desinformação e ao desespero, é parte do mesmo sistema que nos conecta ao restante do mundo como seres humanos sociais neste momento de dificuldade. Dosar o quanto de cada um destes aspectos está nos fazendo bem ou mal neste período de isolamento é tão complicado quanto a própria situação.

Há alguns dias conversei com um amigo muito próximo, através de uma rede social, a respeito desta questão do isolamento. Comentei com ele como tenho me sentido com tudo isso e expliquei os meus pontos de vista sobre a relação do ser humano com os meios de comunicação atuais. Não é como se estivéssemos proibidos de falar uns com os outros. A comunicação em si continua acontecendo normalmente. Inclusive, meu contato com este amigo é muito mais próximo através dos meios de comunicação virtual do que pessoalmente. Apesar de nos vermos praticamente todos os dias antes do isolamento, são nas conversas on-line que discursamos acerca da intensa gama de pensamentos, teorias, experimentos e opiniões dos assuntos que mais nos fascinam na vida. Fomos levados à isso pelo fato da nossa família não suportar mais nos escutar discursando por horas sem fim sobre estes assuntos que, segundo eles, apenas nós dois entendemos e nos interessamos. Então, pessoalmente falamos muito mais sobre outras coisas, junto com nossas famílias. De fato, sinto que seríamos capazes de virar dias inteiros falando sem parar, caso nossos familiares não se opusessem (hahahaha). Mas o ponto que quero chegar é, se o ser humano é um ser social e a era digital nos permite permanecer sociais mesmo que de dentro das nossas próprias casas então, de onde vem esta dificuldade que estou sentindo em passar por este período de isolamento? Ao conversar com meu amigo sobre isso ele teve a espetacular ideia de fazer uma chamada de vídeo em grupo com os nossos amigos mais próximos para jogarmos conversa fora. A ideia é sensacional de fato, mas mesmo assim eu parecia relutante e incrédula de que isso fosse funcionar. Insatisfeita com o resultado que poderia trazer. Ao me questionar por um momento sobre esse meu posicionamento cheguei a um pensamento que acredito ser a explicação sobre o 'ser social' do ser humano. Veja que, quando fora do isolamento social, as pessoas são cheias de afazeres, obrigações, compromissos. Isso, mesmo que de forma subjetiva e inconsciente, lhes coloca em contato com outras pessoas que, por suas vezes também estão envoltas em seus afazeres, obrigações e compromissos, tendo contato com outras pessoas e assim sucessivamente. Se pensarmos em um resumo grosseiro, esta é a nossa sociedade. Um monte de gente cheio de afazeres, obrigações e compromissos. Acreditamos que esse agito é o que nos configura os seres sociáveis que tanto tenho falado. Mas vamos nos aprofundar um pouquinho nesta ótica. É certo que neste momento a maioria, senão todos, os compromissos foram adiados, mas grande parte dos afazeres e obrigações continua. Se nos esforçarmos, facilmente preenchemos o nosso 'tempo vago' com outras diversas atividades. Sabe aquelas que sempre quisemos fazer e não tínhamos 'tempo'? Fora da nossa zona de conforto? Com certeza. Mas ocuparíamos sim, uma grande quantidade de horas do nosso dia. Conversaríamos com nossos amigos normalmente afinal, as redes sociais estão aí para esta proximidade, não é? Qual portanto o ponto desta aflição generalizada?
Com esta reflexão em mente e, sabendo que o social nos é essencial como seres humanos, trago o seguinte questionamento: Será possível, aleatoriamente como em uma roleta russa, escolher um contato qualquer no seu celular, realizar uma chamada de vídeo e ter uma descontraída conversa acerca de uma futilidade trivial sendo isso prazeroso? Digo que fiz o teste da aleatoriedade no meu próprio celular e, apenas após a vigésima quinta tentativa me surgiu um nome ao qual eu estaria confortável em realizar a ligação. Isso significa que não gosto dos outros mais de vinte e cinco contatos que me surgiram anteriormente? Muito pelo contrário. Temos afinidades, fazemos atividades juntos, muitos deles são ou foram meus colegas de Aikido e sinto que temos algo importante em comum, mesmo assim, seria apenas bem esquisito simplesmente pegar o telefone e fazer uma simples ligação sem um objetivo bem claro e específico e achar isso confortável e prazeroso.
O que me faz pensar em uma outra perspectiva deste mesmo experimento. Vamos rodar a roleta russa dos contatos do celular novamente. Quantas tentativas até que você aceitasse ir a um lugar que você gosta (supondo que você, leitor, é um praticante de Aikido assim como eu - visto que é o foco principal das minhas postagens - imagine que este lugar seja um seminário de Aikido) sabendo que a única pessoa que você conhece neste lugar é esse contato sorteado. Vou dizer que, para mim as tentativas se reduziram a duas.
Portanto, o auge da minha nada científica reflexão, me leva a crer que, no fim disso tudo, é o contato físico que nos torna os tais seres sociais. A troca de energias, o olhar nos olhos, ver as micro-expressões nos rostos das pessoas, sentir a entonação, a vibração do som quando elas falam, a energia dos sorrisos ao redor, os sons das crianças correndo livremente atormentando seus pais e tudo o que vem junto com essa mistura de sensações, o choro e o riso.
Eu percebi, com a conversa com o meu amigo e com os experimentos que fiz sozinha comigo mesma, que o sentimento de socializar é diferente numa chamada de vídeo em grupo com os amigos simplesmente porque não é presencial. Na rede social é como se estivéssemos em uma reunião, com pauta de discussão e tudo. Sabe quando você está com os seus amigos em algum rolê e, de repente, todos ficam quietos, mas continua sendo um ótimo rolê só por vocês estarem juntos? Não é bem assim na chamada de vídeo com seus amigos durante o isolamento, pode até acontecer mas é estranho e desconfortável. E não porque o silêncio é ruim. As vezes é exatamente disso que precisamos, silêncio na presença dos amigos. Só estamos ali, um ao lado do outro, ninguém diz nada e o momento está completo por si só. O que quero dizer é, a pressão por manter um assunto rolando já não torna as coisas naturais e pode gerar ansiedade, muitas vezes a troca de energia com outras pessoas é tudo o que precisamos. Não há rede social no mundo capaz de nos proporcionar isso hoje. Talvez algum dia haja, hoje não. Hoje devemos valorizar cada momento ao lado dos nossos amigos, família, colegas, cada oportunidade de sair de casa para trabalhar, estudar, treinar, passear. É tudo o que temos. Essa troca de energias é tudo o que temos. Por mais que os donos das redes sociais tentem nos convencer de que podem nos proporcionar mais contato, mais amigos, mais prazeres, mais liberdade e nos levar a mais lugares, eles jamais vão suprir a nossa necessidade básica de troca de energias como seres humanos.

Tenho visto ao redor do planeta diversos grupos de Aikido e de diversas outras áreas e artes marciais criando vídeos, lives, ensinando formas de treino e outras atividades em casa, abrindo espaços de conversa e discussão sobre os mais variados temas, para nos tirar um pouco da paranoia da doença. É ruim falar sobre o assunto? Jamais. É saudável e necessário. Mas a nossa vida e a nossa saúde não giram em torno disto. É preciso discernimento e, por isso vejo com tanta positividade tudo o que está sendo feito por estas pessoas incríveis que não medem esforços para levar conhecimento, distração, apoio e criar conteúdo de qualidade neste momento tão difícil. Isso, na minha concepção, é Aikido. É perceber seu meio e trabalhar em prol do bem. Estabelecendo harmonia em meio ao caos, esperança em meio ao desespero, luz em meio à escuridão.
É fácil expor uma opinião baseada na sua própria realidade nos grupos de WhatsApp, como se ela fosse a única realidade. Esbravejar palavras ao vento e culpar este ou aquele movimento por tudo. É fácil disseminar o caos, as fake news, o desespero. O que você faz, apesar de tudo isso, para estabelecer um pouco de paz de espírito, de alegria, de equilíbrio no seu meio, na sua casa e na sua comunidade é Aikido. É isso que o Aikido nos proporciona. Momentos de reflexão, de autoconhecimento e um treinamento intensivo que é de dentro para fora todos os dias. Para mim o Aikido nunca foi uma prática de cima do tatame. Sempre se tratou de uma prática interior e diária, incansável e constante. Vejo este momento como uma oportunidade de praticar ainda mais a minha paciência, a minha disciplina, observar meus pensamentos, discorrer minhas reflexões e levar à todos que posso um sentimento de esperança, de apoio e confiança. Vejo a mais exímia oportunidade de SER o Aikido.

E você, querido leitor, qual a sua opinião sobre as reflexões? Para você, o que é mais importante neste momento que estamos vivendo? O que você tem feito em prol do equilíbrio emocional coletivo?

Na certeza de que superaremos em breve este difícil momento, gostaria de encerrar com uma famosa citação do Fundador: "O segredo do Aikido não está no modo como você move os pés, está no modo como você move a sua mente."

Como a sua mente tem se movido e para onde ela tem lhe levado?