Meu Caminho Aikidoka

Total de visualizações de página

sábado, 28 de março de 2020

Meu Caminho Aikidoka - O Sonho Despedaçado


Todos atravessamos momentos difíceis durante nosso percurso nesta vida. Alguns mais difíceis que outros. Cada um de nós enfrenta os momentos de tensão de acordo com nossos valores, desejos e medos.
Desde que descobri no Aikido o meu caminho de vida, descobri dentro de mim um medo colossal que jamais havia compreendido antes mas que, hoje, vejo de forma clara. Acho que antes, talvez, eu não tenha me dado conta do peso da chamada ação x reação. Eu sempre encarei esta máxima como fruto das nossas escolhas. De algo que seja consciente e premeditado. Se eu tomo uma decisão, esta trará consigo a sua consequência, a sua reação. E eu sempre julguei, imaginando, oras, se eu não tomar decisões equivocadas, não há o que temer. Eis que a vida, em sua maneira divina de nos ensinar, me mostra que, mais uma vez, não, eu não estava certa.

O episódio que eu quero narrar hoje, aconteceu há muito tempo. Demorou um pouco, é claro, para que eu pudesse refletir com maior clareza sobre o que este episódio estava tentando me ensinar.
Eu já treinava há um ano na época e estava muito empolgada com muitas coisas. Minha vida estava no início de um ciclo de muito aprendizado. Eu sentia tudo começando a se encaixar, pouco a pouco e isso me inspirava cada dia mais.
No nosso Dojo era quase que uma tradição a excursão anual para a Sede do nosso Instituto em São Paulo para que todos os Deshis (alunos) tivessem a oportunidade de treinar com nosso mestre.
A viagem era sempre de van, ou ônibus, organizada pelo meu Sensei, iam Deshis de Jaraguá do Sul e Joinville de Santa Catarina e rendiam histórias que eram contadas o ano inteiro, sempre acompanhadas de muitas risadas, além de muito aprendizado envolvido. Quando comecei nos treinos, passei o ano inteiro ouvindo as histórias espetaculares contadas pelos meus Sempai (aluno veterano). A vontade de ir na tal excursão crescia a cada dia.
No final daquele mesmo ano a organização da viagem começou e eu logo me prontifiquei a participar. A viagem acontecia no mesmo final de semana do Encontro Nacional do nosso Instituto, que tem Dojos no Brasil inteiro e, hoje, também um nos Estados Unidos. O Encontro Nacional ocorre uma vez por ano e traz gente de todo canto! É uma maravilha! Ter a oportunidade de treinar com tanta gente diferente, com tantas experiências novas. Ah, eu estava muito empolgada! Contava os dias, as horas e os minutos pra chegar o dia! A minha esposa havia começado a treinar também e estávamos ansiosas para viajar junto com o pessoal do Dojo.
A data chegou e embarcamos logo cedo no ônibus. Seguimos viagem à São Paulo. Pouco mais de 9 horas até a Sede do nosso Instituto.
No caminho, muitas histórias, muitas risadas, muitos fuscas! (Uma brincadeira interna que aprendemos com uma amiga! hahahah). Ao chegarmos, minha expectativa era de haver um treino, como haviam mencionado, mas este foi cancelado para que o pessoal "descansasse". Eu não concordava, já que viajei mais de 600 Km para treinar... não para descansar. Eu não entendia essa mania que o pessoal tem de fugir do treino, mas enfim... Passamos o restante da noite ociosos. No dia seguinte haveria o Encontro Nacional e treinaríamos o dia inteiro!
Na manhã seguinte acordamos cedo para que pudéssemos tomar um bom café da manhã antes de nos dirigirmos ao local do evento. O segredo era sempre observar o Sensei. Se ele já houvesse terminado o seu café, então você também terminava. Ninguém queria deixar o Sensei esperando. É meio confuso no começo mas, com o tempo e muita observação, você já antevê o que vem a seguir e as coisas fluem melhor. De qualquer forma, não deixe seu Sensei esperando, nunca. Esteja sempre pronto para seguir. Você deve esperá-lo, não ao contrário. Isto demonstra respeito e humildade para com os ensinamentos que você recebe e pelo trabalho do Sensei. Além de fazer parte do Budo.
Ao chegarmos no local do evento eu já estava maravilhada com tudo. Empolgação não faltava. Fomos honrosamente recepcionados pelo nosso Mestre Maruyama Shihan. Ele fez questão de ficar do lado de fora e cumprimentar a todos na chegada! Este gesto me fez pensar um pouco sobre humildade e gratidão. Eu sempre ficava reflexiva sobre o que faz uma pessoa ter seguidores (não esses seguidores numéricos na internet, seguidores e discípulos da vida real, sabe?), no motivo que faz uma pessoa seguir a outra. Quando parei para pensar um pouco sobre isso, percebi que a admiração que muitas vezes sentimos pelas pessoas, quase nem sempre é diretamente relacionada às coisas que essa pessoa conquistou, fez ou realizou, mas sobre como ela fez você se sentir enquanto vocês estavam juntos. O fato de a pessoa ser fiel aos seus próprios princípios, agir pelo que prega, seguir os próprios ensinamentos e discursos. Nosso mestre sempre nos prega sobre respeito, humildade e gratidão. Seu gesto naquele dia nos demonstrou cada um destes ensinamentos, de uma só vez.
Os treinamentos logo iniciaram pela manhã e a dinâmica parecia bem interessante. O enorme tatame fora dividido em 4 partes iguais, onde os 4 Sensei mais graduados do nosso Instituto ministrariam detalhes técnicos com base nas suas maiores habilidades. Nós fomos separados de acordo com as nossas graduações e treinaríamos meia hora com cada Sensei, com um pequeno intervalo de 5 minutos entre um e outro para que pudéssemos nos hidratar.
O treino teve início e, para o meu grupo, o primeiro quarto do treino já foi bem intenso e passou muito rápido. Era tanta informação para assimilar que mal vimos o relógio andar. Nesses encontros a gente só quer absorver o máximo que a gente consegue. Logo na sequência, para o segundo quarto dos treinos, meu grupo treinaria com a Sensei Teandra. Para mim, era o treino do dia. Como mulher, praticante de Aikido, era uma inspiração poder participar de um treino ministrado por uma mulher. Observar sua visão da técnica e da arte. Dentro do Aikido não temos separação entre homens e mulheres nos treinos. As técnicas são para todos. Isso é o que mais me admira nesta arte. Independente de você ser homem ou mulher, a sua visão vai ser diferente. É diferente para cada um. E isso me fascina.
O treino da Sensei Teandra começou intenso. Fizemos alguns movimentos, para mim era tudo novo, eu era recém graduada na faixa Roxa (4º Kyu). Alguns minutos se passaram e então veio a dor. Forte. Avassaladora. Havia torcido meu pé e meu parceiro de treino terminou por pisar por cima, intensificando ainda mais a lesão. Eu caí. As lágrimas rolaram. Sensei Teandra me pegou no colo e me carregou para fora do tatame. Me lembro de ela me dizer que tudo ia ficar bem. Um dos enfermeiros que estavam atendendo ao evento veio até mim para examinar. Ele passou pomada, massageou e enfaixou. Ele me disse que eu não deveria pisar pelas próximas horas, suspender os treinos naquele final de semana e procurar meu ortopedista ao voltar para casa. Aquilo fez meu mundo cair. A dor no pé já havia passado e estava longe da dor que eu sentia em meu peito. Do fundo do coração, e preferia a dor do pé torcido por mais mil vezes do que a dor que tomou meu peito ao ouvir que não poderia mais participar dos treinos do final de semana. As lágrimas rolaram por um longo período, lá da arquibancada, assistindo aos treinos que continuavam acontecendo. Eu não conseguia aceitar. A decepção. A injustiça do universo. A dor.
Foi a primeira vez que senti dor e medo ao vislumbre da leve ameaça de que algo tão especial e importante poderia ser tirado de mim, assim, tão rapidamente, de um segundo para o outro.
Para mim, o final de semana estava acabado.
Neste emaranhado de sentimentos e pensamentos nosso mestre, Maruyama Sensei veio ter comigo. Ele se sentou ao meu lado e perguntou como eu estava. Eu não sabia responder àquela pergunta, então só disse que estava bem. Que ia ficar bem. Ele me perguntou sobre a lesão, se eu havia sido atendida e se haviam me tratado bem (os enfermeiros). De fato, eu havia sido muito bem tratada. Recebi a atenção necessária. Então respondi que sim, que havia recebido orientações para não treinar mais aquele dia. Maruyama Sensei, com muita calma me disse que era bom que eu me recuperasse totalmente antes de voltar aos treinos. Era importante que o corpo estivesse bem para que os treinos fossem bem aproveitados. Lembro de concordar e tentar parecer calma e no controle dos meus sentimentos, quando meu interior era puro desespero. Mas eu não queria parecer fraca na frente do nosso mestre. Logo ele mudou de assunto e me perguntou o que eu estava achando da divisão no tatame, por graduações com a oportunidade de explanar diversas visões da técnica de acordo com nossos conhecimentos. Eu, de fato havia gostado muito da forma como eles haviam pensado na organização do evento e disse isso ao Shihan da melhor forma que consegui manifestar no auge da minha frustração por estar fadada à assistir de longe tudo aquilo que esperei por tanto tempo para fazer parte.
Assim que a segunda meia hora de treinos teve fim e os cinco minutos de intervalo iniciaram me vi rodeada de pessoas. Meus amigos mais queridos vieram todos para ver como eu estava. Eu estava triste e desanimada. Eles fizeram de tudo para levantar meu ânimo.
Durante todo o final de semana que se seguiu fui acompanhada, cuidada e amada. Senti em cada uma das pessoas que me acompanhou a empatia e solidariedade pelo momento que eu estava vivendo.
Meu Sensei dispôs de muito tempo se certificando de que eu superaria aquele momento e seguiria em frente.

Naquele tempo eu tinha menos entendimento, não consegui não ficar completamente devastada com o ocorrido. Poucos foram os momentos em que senti gratidão por todos os que dispuseram de seu tempo para cuidar de mim e constantemente me vi esbravejando contra o Universo. Não conseguia ver uma coisa boa sequer. Nem o fato de que a minha recuperação seria, muito provavelmente, rápida era o suficiente para acalmar a minha ira.
Voltamos para casa e eu estava em frangalhos. Tentei rir com o pessoal durante a viagem, mas era difícil e eu me entregava à tristeza rapidamente.
Conforme a recomendação do enfermeiro e do meu Sensei, busquei auxílio médico ao chegar em casa. O diagnóstico era promissor. Não havia rompimento do ligamento do tornozelo, apenas uma leve lesão no mesmo. A qual cicatrizaria rapidamente. Me renderia apenas 4 semanas afastada do tatame fazendo o tratamento com anti-inflamatórios.
Hoje vejo como 4 semanas passam rápido, mas na época, para mim era o fim. Como se eu não fosse sobreviver. Me afastei de cima do tatame, mas não do Dojo. Eu ia ao Dojo assistir os treinos com frequência durante o mês que não pude treinar. Vez ou outra meu Sensei até me mostrou uma e outra torção em que eles estavam trabalhando naquela semana. Era ótimo, mas eu não via a hora de poder subir naquela lona novamente e participar ativamente dos treinos.
Durante o tempo em que treinei 'do banco' no entanto, tive a oportunidade de observar diversos aspectos das técnicas que não haviam me ocorrido até então e, talvez, nem chegassem a ser observados por mim não fosse pela situação. A perspectiva era diferente e me vi enxergando as técnicas com um novo olhar. É como se elas fossem todas novas de novo. Isso sem contar a experiência de poder observar o Sensei ao dar os treinos. Observar a sua didática e postura, atitudes frente às situações e dúvidas dos alunos. Por diversas vezes me vi questionando o que eu faria se estivesse no lugar dele. Lembro de ter conversado com ele a respeito de uma ou outra situação que acabei vendo de fora do tatame e isso me rendeu explicações e observações que talvez eu jamais chegasse a ter se tudo tivesse ocorrido diferente.
Descobrir o que aquele momento tentou me ensinar é algo difícil de mensurar. O que posso afirmar é o quanto de fato consegui vislumbrar por conta do que aconteceu. Sim, foi triste e meu sentimento de perda foi real. Mas hoje consigo ver com maior tranquilidade que a circunstância me trouxe muitas reflexões, aprendizados e observações, além de ter estreitado meus laços com meu Sensei e com alguns amigos mais próximos. Eu não teria passado por esse momento sem o auxílio de cada um deles.

O que me traz a certeza de que aprendi uma lição é poder me imaginar em uma situação parecida e não entrar em pânico, como ocorreu naquela vez. É sentir no meu coração que os momentos difíceis e de tristeza vão chegar. Mas com eles vem muitos aprendizados, se eu me permitir viver cada momento sabendo que tudo passa. Devo procurar levar o melhor de cada uma destas oportunidades como um crescimento pessoal, pois hoje vejo o Aikido como uma prática constante que não depende de eu estar no Dojo para treinar. O treinamento é diário e constante. Treinar a mente também é treinar Aikido.

"Se o coração é impuro, estarás cheio de tensão interior, de orgulho, de desordem, de confusão, de mil enfermidades físicas, mentais e emocionais. Jamais poderás compreender o Aiki se seu coração não se purifica. Deves, pois, limpa-lo para ter paz consigo e com o mundo, não sendo inimigo de nada e não vendo nada como seu inimigo." - Ueshiba, Morihei - Fundador do Aikido

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente sua opinião! É muito importante para mim!