Meu Caminho Aikidoka

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sábado, 4 de abril de 2020

Meu Caminho Aikidoka - O 1º Kyu


Este texto é sobre medo, insegurança, dor e lágrimas.

Um ano havia se passado desde o meu último exame de graduação de Kyu. Este com certeza foi o maior tempo em que permaneci treinando sob um mesmo título desde que iniciei a minha trajetória no caminho da paz no início de 2017.
Quem me acompanha pelo blog sabe que sempre digo que as coisas estão ficando cada vez mais difíceis. As vezes quando eu digo isso é com um medo enorme de que o caminho se torne ainda mais confuso e tortuoso. Na verdade, enquanto escrevo estas palavras me lembro claramente do meu Sensei falando do quanto seria difícil. Ele dizia: "o Aikido não é fácil, não vai ser fácil para nenhum de vocês. Vocês escolheram o caminho marcial mais difícil para trilhar". Nunca me passou pela cabeça o significado de 'difícil' ao qual ele estava se referindo na época. É claro que hoje sei que o conceito de dificuldade do Sensei é completamente diferente do meu, assim como é diferente de qualquer outra pessoa. Cada um tem o seu próprio conceito de dificuldade.
A dificuldade começa quando você percebe que quanto mais você conhece, mais existe a desbravar, a estudar. Não importa o quanto você saiba, nunca é o suficiente para você pensar que sabe um pouco e se conformar com isso. E essa sensação só se agrava porque, ao passo que você evolui, os iniciantes ao seu redor começam a se espelhar em você e com isso eles vem até você com as suas dúvidas e anseios, como se você fosse o poço do conhecimento que eles precisam naquele momento. Sei disso pois, tempos atrás era eu nesse papel. Na verdade continua sendo eu nesse papel. Então você vai percebendo que as dúvidas delas são as suas dúvidas e que, de fato, você nada conhece. Tenho a impressão de que vai ser sempre assim. Não é como se alguém estivesse na frente. O conceito de graduação definitivamente não vai te colocar na frente de alguém. E digo isso não porque eu tenha algum anseio de estar 'na frente', muito pelo contrário. Mas sempre tive a impressão que meu Sensei, o Sensei dele, nosso Mestre, todos eles estivessem de alguma forma na minha frente. Eles porém, também estão na busca do conhecimento e não são os detentores das verdades absolutas acerca do Aikido. Eles também estão estudando arduamente em busca das respostas. A diferença que eu vejo é que, as respostas que eu busco hoje, eles já buscaram algum dia, e as respostas que hoje eles buscam alguém já buscou no passado. Hoje me vejo estudando mais ao invés de vir perguntar tudo a todo momento. Me vejo dialogando com meus sempai e Sensei e argumentando sobre o entendimento de um ou outro ponto, criando a minha própria visão do Aikido. Quando meu Sensei me diz que é preciso aprender a andar pelas próprias pernas acredito que é nesse ponto que ele quer chegar. Ele vai sempre nos guiar pelo caminho, mas a busca pelo conhecimento e entendimento deve partir de cada um de nós.

O ano de 2019 foi turbulento. Muitas reviravoltas. Eu me sentia esgotada emocionalmente. Eu queria estar bem, mas não encontrava forças no meu interior que me mantivessem de pé. O Aikido, que tantas outras vezes havia sido meu porto seguro, era agora uma fonte de dúvidas e questionamentos. Eu começava a ver algumas coisas que não me agradavam e eu não entendia. Não entendia onde eu estava errando. O que estava me faltando. Era como se eu estivesse às cegas. Procurei estudar, buscar de alguma forma as respostas sem muito sucesso. Eu já havia pensado em parar em outros momentos, mas nunca desisti. Tentava lembrar do quanto esse caminho já tinha me trazido alegria. Não era mais assim. Era um questionamento atrás do outro. Os treinos estavam pesados, eu me afastei do meu Sensei, do Dojo e das pessoas. Eu me chateava  por perceber que não fazia falta lá. Acho que isso se reflete no fato do quanto o Dojo fazia falta pra mim. Mas é difícil ficar quando você já não acredita mais. Essa é uma dificuldade minha. Muitos sabem que o Dojo é importante pra mim. O que a maioria não tem ciência é do quão colossal é o seu significado na minha vida e eu só não aguentava olhar pra ele agora e sentir que não era verdadeiro. Tudo o que eu tinha vivido até então ganhava um novo significado e eu já não sabia se a imagem que eu tinha construído era baseada na realidade. Talvez eu tenha esperado demais. Talvez eu tenha me iludido. Talvez eu tenha entendido tudo errado.
Eu queria parar. Cheguei a faltar por semanas inteiras mas nunca oficializei a minha parada. Estas semanas em que eu ficava sem treinar, tentava me convencer de que era um tempo para organizar a minha cabeça e conseguir ver as coisas com mais clareza por uma nova perspectiva. Tenho medo de pensar que eu só estava me enganando.
O tempo ia passando ao passo que eu me acalmei e tentei, mais uma vez, me convencer de que não deveria parar. Eu decidi que apesar das minhas dúvidas e questionamentos eu deveria buscar o meu próprio caminho. Fora dali eu estava lidando com muita coisa na vida. Poucas pessoas tem conhecimento das situações fora do Dojo que me afrontaram naquele período. A única coisa que eu sei é que eu estava fragilizada, sem forças e esgotada mas nunca cheguei a comentar essas minhas fraquezas com ninguém além da minha esposa. Ela também já não sabia mais o que fazer comigo. Ela sofria pois tudo o que ela queria era me ver bem e feliz, o que já  parecia inalcançável em certo ponto. Ela estava frustrada. E eu também.

Alguns meses antes do exame do final do ano meu Sensei me chamou para uma conversa. Tentei da melhor forma que eu consegui explicar o que eu sentia e o momento que eu estava vivendo. Disse que eu não me via preparada para fazer o exame de graduação. Não é como se eu não quisesse fazer o exame ou me graduar. Eu queria sim, queria muito. Apesar de não me enxergar como a Sempai que meus colegas mereciam, eu desejava muito chegar à Faixa Marrom. Só que o exame chegou em uma época errada da minha vida. Uma época em que eu simplesmente não conseguia dar a ele a atenção que ele merecia. Meu Sensei tentou me explicar que era ele quem decidiria quando eu estivesse pronta. Eu entendo esse conceito. Aprendi sobre ele logo no início, mas sempre me ocorreu que servia para que observássemos a nossa arrogância e prepotência se em algum momento cogitássemos a ideia de impor ao Sensei que chegara a nossa hora de graduar. Sempre concordei com isso, afinal, vejo que a evolução é conquistada e não imposta. Eu queria, pelo menos uma vez, levar as coisas em um ritmo mais lento. Organizar meu emocional e a vida antes de assumir mais responsabilidades. Eu, de verdade, queria os compromissos e responsabilidades que viriam com a graduação, por isso queria poder dar tudo de mim para este momento. Sempre tive a sensação de que meus exames de graduação foram acontecendo um atrás do outro sem que eu tivesse tempo de respirar entre eles e, por mais que eu treinasse, não era o bastante. As vezes faltavam dias na semana para que eu treinasse o suficiente. Naquela conversa o Sensei me convenceu a, mesmo assim, fazer os treinos de kihon, eu aceitei na certeza de que não seria convidada desta vez afinal, havia lhe explicado que não era falta de técnica ou ritmo que me prendiam. Só não era o meu momento.
À partir daquele dia treinei arduamente pelos 4 meses seguintes. Eu estava me apoiando no Aikido mais uma vez para tentar superar tudo o que eu estava vivendo lá fora na vida real. Muitas pessoas participaram dessa jornada. Um amigo em especial se desdobrou para estar presente em praticamente todos os treinos que eu fiz nesse período e abdicou do próprio treino para que eu pudesse praticar mais as minhas técnicas da minha grade e ficou como meu Uke por inúmeros treinos seguidos. Com isso, é claro que tecnicamente eu estava bem. Como havia me dedicado ao treinos, meu físico também se fortaleceu. Ainda que a vida lá fora estivesse um caos, eu me sentia melhor. Os treinos estavam me ajudando a superar. Eu busquei um terapeuta pra me ajudar com as questões emocionais porque eu queria melhorar e aprender a lidar com tudo o que acontecia aqui dentro.

Enquanto tudo isso acontecia, a data do exame se aproximava. Ele aconteceria no dia 07 de Dezembro. Então, eis que no dia 25 de Novembro fui oficialmente convidada pelo meu Sensei a realizar o exame. Como mencionei, eu não esperava que aquilo acontecesse. Não esperava que fosse convidada desta vez mas, indo contra a tudo o que eu havia explicado, meu Sensei decidiu que eu estava pronta e eu não podia não concordar. Seria desonroso discordar e não aceitar o convite. Ao mesmo tempo em que eu estava feliz em ter recebido este reconhecimento do Sensei, estava apavorada com a ideia de passar de novo pelo sufoco do meu último exame com toda a falta de preparo físico. Eu discorro com maiores detalhes sobre esse exame aqui. Faltava pouco tempo para a data do exame. Duas semanas precisamente. Era o tempo que eu tinha para consertar tudo o que me amedrontava. Era tudo o que me separava de fazer um exame que eu não queria e, mesmo assim, faria tudo ao meu alcance pra dar o meu melhor.

Só que não foi o suficiente.

O dia chegou. Eu estava nervosa. Tinha certeza de que iria sucumbir ao despreparo físico e eu tentava pensar positivo.
A organização decidiu por deixar os exames dos mais graduados por último naquele dia. Eu e mais dois colegas. Enquanto aguardávamos, ajudamos nas bancas e como Uke para outros colegas que prestavam seus exames. Foi bom para controlar a ansiedade e o nervosismo mas a hora chegou.
A primeira rodada de técnicas mal havia iniciado e o Sensei responsável pela minha banca me chamou a atenção por uma postura que era esperada que eu tivesse. Na hora eu fiquei um pouco confusa, pois havia treinado isso e não via onde poderia estar errando. Pensei que poderia ser o nervosismo me atrapalhando e procurei focar neste ponto em específico que a banca mencionou. Fiz mais alguns movimentos e o Sensei, novamente, me pontuou sobre o mesmo problema. Realmente, eu havia treinado aquilo, não entendia onde estava o erro. Àquela altura eu tinha certeza de estar realizando a técnica e a postura da mesma forma que vinha fazendo no Dojo pelos últimos quatro meses, então eu simplesmente não sabia o que dizer à banca.
O exame continuou ao passo que as minhas contagens de movimentos já não fechavam mais com as contagens da banca. Atribuí isso às chamadas de atenção que aconteceram logo no início e pensei que eu deveria me concentrar mais. Nesse ponto eu já sentia meus olhos se encherem de lágrimas e eu me sentia incompetente. Não conseguia nem fazer uma contagem coerente. Logo eu percebi que várias técnicas da minha grade de Kihon não estavam sendo solicitadas em sua totalidade de variações enquanto que outras simplesmente não estavam sendo pedidas. Ao entrever que isso estava acontecendo eu tinha certeza de que não importa o que eu fizesse, eu jamais seria aprovada naquele exame. A banca já havia desistido de mim e não achava necessário perder muito mais do seu tempo comigo. Então as lágrimas começaram a rolar. Meu coração doía por pensar que eu era uma perda de tempo. Que ali não era o meu lugar. Lembro de ver meus familiares aflitos ao redor do tatame, sem poder fazer nada e eu só me sentia envergonhada por lhes trazer tamanho desgosto. A banca me pediu para parar por um momento e me recompor. Mas eu não conseguia. Minha esposa apareceu e me falou algumas coisas, palavras encorajadoras. Eu queria deixá-la orgulhosa, mas não conseguia. Não conseguia parar de chorar e soluçar. Logo meu Sensei apareceu na minha frente e começou a me perguntar um monte de coisas que eu não sabia como responder. Eu só queria desaparecer dali. Sumir e nunca mais ser encontrada. Ele me disse várias coisas que eu não lembro. Só lembro de ter ouvido: 'você chegou até aqui pra desistir agora?'. Até hoje não sei se foi ele ou a minha voz interior gritando para que eu levantasse mas, naquele momento eu decidi que eu me levantaria e iria até o fim. Estando ou não reprovada pela banca. Eles querendo ou não perder o seu tempo comigo. Eu não estava cansada, eu poderia ter continuado por horas. Eu só não conseguia parar de chorar. As lágrimas escorriam pela minha face, molhavam meu dogui, embaçavam a minha visão e me impediam de respirar corretamente. Mas eu levantei, me posicionei e continuei. Fiz outras sequências de movimentos, um dos meus Ukes não estava me ajudando, era como se ele não quisesse estar ali e me dificultava em todos os movimentos. Lembro de pensar em meio às lágrimas que diabos de provação era essa!?
Como se não fosse o suficiente, a banca me pediu uma sequência de técnicas que não existiam na minha grade de kihon para o 1º Kyu. Depois de tudo o que já tinha acontecido naquele dia, eu já duvidava até da minha própria sanidade e com certeza eu estava errada, com certeza não havia prestado atenção à minha grade como deveria durante os treinos. Dias depois descobri que aquela técnica realmente não fazia parte da minha grade de Kihon, afinal.
Lembram daquele amigo que treinou comigo incansavelmente antes do exame? Ele estava comigo como Uke desde o início. Quando o Sensei solicitou que os Ukes fossem trocados, ele fez questão de permanecer onde estava. Alegou que não estava cansado, o que nitidamente era uma mentira (ninguém diga que eu disse isso aqui). O outro Uke foi substituído e eu tentava de alguma forma demonstrar uma técnica que acreditava nunca ter visto ao passo que sentia a minha loucura crescer e se tornar cada vez mais real.
O exame continuou meio que pela metade até a hora dos Jiu Wasas (aplicação de técnicas livres). Eu ainda chorava, não havia parado de chorar em um momento sequer mas estava feliz de estar chegando ao fim. Dois Jiu Wasas da banca avaliadora se passaram e eu tinha terminado. Mas eu ainda teria mais uma surpresa naquele dia. Sensei Marcos (Sensei do meu Sensei) veio para, ele também, aplicar um Jiu Wasa. Era a primeira vez, desde que comecei os treinos, que Sensei Marcos me concedia a honra de receber um Jiu Wasa seu. Eu só sinto muito por não ter tido muito a oferecer naquele momento. As minhas lágrimas já eram uma mistura de decepção com alegria à essa altura.
Eu estava alegre pelo presente do Sensei Marcos, alegre por estar concluindo o exame, fosse qual fosse o resultado. Mas profundamente decepcionada por não ter sido capaz de estar emocionalmente equilibrada para esse momento.

Dias depois, chegou ao meu conhecimento que as bancas avaliadoras dos nossos exames de 1º Kyu foram instruídas a reduzirem o tempo dos exames devido ao limite de horário que tínhamos para fechar o ginásio e entregar as chaves. Descobri só depois que tínhamos esse limite de tempo, então em nenhum momento eles estavam desistindo de mim ou achando que não valia a pena perderem seu tempo comigo.

Eu fui aprovada afinal.
Ainda não me vejo detentora desta graduação. Talvez com o tempo isso mude, talvez não. Não acho que, como sempai (aluno veterano) eu seja qualquer exemplo a ser seguido, ou tenha qualquer conhecimento a mais que meus colegas, visto que o que tenho é fruto apenas das minhas experiências e buscas particulares neste caminho de vida.

Eu continuo com a terapia e a aceitação da minha graduação vez ou outra surge nas sessões de conversas. O que me intriga é que independentemente de eu me ver ou não com esta graduação, esta é algo inegável para as pessoas ao meu redor. Neste ponto, vejo a enorme vantagem do Japão em não utilizar faixas coloridas para as graduações de Kyu. É como se isso desse mais tempo às pessoas de lhe conhecerem pelo menos um pouco antes de julgar o que você deveria ou não saber e o que deveria ou não ser uma dificuldade para você já que seria bem indelicado sair perguntando a graduação dos colegas quando você é recém chegado no Dojo. Hoje apenas sinto que sou obrigada a carregar o peso desse título na cintura, ainda que não tenha certeza do que ele deve significar para mim.

Ele deveria significar algo, afinal?

"Quem vence alguém é um vencedor, mas quem vence a si mesmo é invencível." - Ueshiba, Morihei - Fundador do Aikido

Ganbatte Kudasai!

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